21 de setembro de 2012

A menina que brincava com fogo


Eis o que a maior parte das mulheres fez quando foram estupradas: nada. Acredito que não há muito o que fazer. Prestar uma queixa na polícia. Tentar identificar o estuprador, talvez. Isso é o que mulheres ordinárias fariam. Lisbeth pode ser muitas coisas, mas, nem de longe, é ordinária. Após ter sido vítima de um estupro violento, não se deixou abalar. Não se deixou impressionar. Lisbeth ao menos chorou. Passou uma semana inteira investigando maneiras de eliminar seu estuprador - pensou em cianureto de potássio, uma solução letal feita de nicotina e até mesmo em baleá-lo. Quando foi capaz de formular o jeito ideal de vingança, pois o plano em prática. Lisbeth enfiou um pênis de borracha no ânus de seu estuprador. Como se não bastasse ela tatuou, sem muito cuidado, uma frase bastante chamativa no peito do agressor: SOU UM PORCO SÁDICO, UM CANALHA ESTUPRADOR.

Esse episódio define bem o gênio da garota com a tatuagem de dragão. Ela não é exatamente bonita, porém não se importa com isso. Mas se preocupa com a sua imagem. Lisbeth é peculiar na aparência e no coração, e gosta de chamar certa atenção por onde passa. Porque, se há uma coisa que torna Lisbeth Salander em Lisbeth Salander é o fato dela ser um ser individual. Ela parece viver em um vácuo de sociabilidade, e nesse vácuo construiu a própria personalidade peculiar. Nós, em uma sociedade, queremos nossa individualidade, queremos ter uma identidade singular, queremos ser livres das responsabilidades e diversos laços que nos prendem. E Lisbeth é capaz de representar tudo isso. Parece que justamente o fato da sociedade ter-lhe negado tudo, pelos seus semelhantes terem lhe dado as costas, a garota que sonhava com um galão de gasolina e um fósforo parece não ter sentido a necessidade de se enquadrar em qualquer padrão. Lisbeth não acredita em nenhuma forma de justiça ou moral, não acredita nas pessoas e tem dificuldade em deixar qualquer um entrar na sua vida. É fechada e enigmática, e nunca fala de si mesma. E, por isso, pagou um preço tão alto por Mikael Blomkvist, o outro protagonista da história. Ela quer ceder a amizade que lhe é demonstrada, ceder ao carinho e gratidão que o jornalista tem pela garota. Ela é tocada por isso. Mas nunca cede de fato. Quando Salander parece mais forte é quando vemos sua fragilidade. E, de certa forma, também notamos a dificuldade que a hacker tem em lidar com os escassos sentimentos. 


E, por isso, amamos Lisbeth Salander. Por ser capaz de manter os ideais em momentos de crise, por criar o próprio padrão de justiça e encará-lo como uma forma de vida. Amamos Lisbeth porque ela desafia uma sociedade que defende o direito às mulheres, mas que é profundamente violenta e machista. Porque a sua experiência demonstra que laços de sangue não significam nada. Amamos Lisbeth por ter sido capaz de defender o que acredita com um galão de gasolina e uma caixa de fósforos. E, principalmente, porque gostaríamos de ser como ela, um indivíduo que, com a impossibilidade de se enquadrar em uma trajetória normal, traçou sua própria, e solitária, liberdade.

Um comentário:

Anyssa disse...

Parabéns pelo texto!
Quando li a série Millennium, praticamente engoli os livros, todos de uma vez. Acho que porque muitas vezes, em livros, filmes, novelas ou qualquer história que nos é contada, no final sempre ficamos com uma sensação de injustiça. A construção dos personagens é sempre de um vilão, 100% ruim, e por isso pode tudo, e um(a) mocinho(a), que de tão bonzinho não faz nada.
Acontece que as pessoas não são assim. E é por isso que, pra mim, Lisbeth Salander é um dos personagens mais bem construídos que já vi e a razão do sucesso da série Millennium. A vingança dela lava a alma, porque apesar de não ser uma atitude 'correta' ou 'ética', é talvez a única atitude que poderia se equiparar ao que ela sofreu.